O DIREITO À ÁGUA NA PÓS-MODERNIDADE: ENTRE PARADIGMAS, BIODIVERSIDADE E RESPONSABILIDADES
- Instituto Ora

- 1 de out.
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Por Patrícia Valdivieso Hessel, Instituto Ora.
A água, historicamente reduzida à condição de acessório da terra, consolidou-se na pós-modernidade como direito humano fundamental, bem comum da humanidade e eixo estruturante da biodiversidade. Longe de se restringir a uma função econômica, revela-se como categoria plural: social, cultural, ecológica e jurídica. Michel Prieur já definia a água como um “direito complexo, com escopo de regulamentar o acesso, o uso e assegurar a preservação da água”. Essa definição ganha maior densidade à luz do conceito de microssistema hidronormativo, que conecta normas ambientais, urbanísticas, sanitárias e territoriais em um mesmo arranjo jurídico, exigindo leitura integrada e transdisciplinar.
Água, biodiversidade e crise civilizatória
A crise hídrica é indissociável da crise ambiental. O Relatório Mundial da UNESCO sobre Desenvolvimento Hídrico (2024) aponta que 85% das áreas úmidas já desapareceram desde o início do século XX, impactando drasticamente a biodiversidade. Cada rio poluído, cada nascente destruída e cada floresta ciliar suprimida significa a perda de serviços ecossistêmicos essenciais — como a regulação climática, a recarga de aquíferos e a filtragem natural da água. A perda da biodiversidade aquática compromete cadeias alimentares, reduz a resiliência climática e intensifica processos de desertificação. A água, nesses termos, não é apenas recurso: é infraestrutura ecológica invisível, suporte vital de sociedades humanas e não humanas.
Exclusão socioambiental: números que falam por si
Os números contemporâneos são contundentes. De acordo com a ONU: 2,2 bilhões de pessoas ainda não têm acesso seguro à água potável; 3,5 bilhões carecem de saneamento adequado; e estudo recente na Science revela que 4,4 bilhões de pessoas em países de baixa e média renda não possuem água potável segura em seus domicílios. Esses dados confirmam que a escassez hídrica global não é apenas fenômeno físico: é resultado de desigualdade social, degradação ambiental e falhas de governança. E há recortes ainda mais duros: mulheres e meninas, em diversas regiões, continuam sendo as principais responsáveis pela coleta de água, situação que perpetua desigualdades de gênero, limita oportunidades educacionais e compromete a saúde.
O desafio brasileiro: hidrodemocracia e urbanismo sustentável
O Brasil, detentor da maior reserva de água doce superficial do planeta, vive paradoxos agudos: desmatamento em bacias críticas, urbanização desordenada, contaminação de rios e conflitos entre uso humano, industrial e agrícola. A chamada hidrodemocracia só será alcançada quando comunidades tradicionais, sociedade civil e poder público tiverem voz real nos processos decisórios. Sem a democratização da gestão hídrica, persistirá o modelo tecnocrático, insensível às dimensões sociais e ecológicas. Aqui, a articulação entre direito ambiental, direito urbanístico e direito das águas torna-se condição indispensável para garantir justiça socioambiental. Como destacou Erick Jayme, “a informação científica constitui apenas uma das bases das decisões; as considerações sociais e políticas desempenham papel predominante”.
O papel do Instituto Ora
O Instituto Ora atua na convergência do reconhecimento da água como patrimônio comum da humanidade e pilar da biodiversidade; participação social e sustentabilidade; defesa da água como direito fundamental em diálogo com a justiça climática e a restauração de ecossistemas; promoção de governança socioambiental inclusiva, assegurando que múltiplas vozes estejam presentes nas decisões que moldam o futuro da água.
Referências
1. PRIEUR, Michel. Cours de D.E.A. en Droit de l’Environnement. Universidade de Limoges.
2. CAMARGO, Guilherme José Purvin de (Coord.). Direito Ambiental em Debate. São Paulo: APRODAB.
3. UNESCO. World Water Development Report, 2024.
4. UN-Water. Water Facts: Ecosystems and Biodiversity, 2023.
5. UN-Water. Human Rights to Water and Sanitation, 2024.
6. Science (2024). Estudo sobre acesso domiciliar à água potável segura.
7. UNICEF/ONU Mulheres. The gender dimension of water access, 2023.
8. JAYME, Erick. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil francês, 2003.
Patrícia Valdivieso Hessel – Advogada, especialista em Direito Ambiental, Urbanístico e Imobiliário. Diretora de Expansão do Instituto Ora. https://www.linkedin.com/in/patriciavaldiviesohessel/
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